Social-democracia avançada


Por JG
Lembro-me do tempo em que eu ainda não era visto como um extraterrestre nas reuniões do partido. Lembro-me de nessa altura ouvir um camarada dizer que mais vale dizer alguma asneira numa reunião (leia-se um disparate) do que estar calado e não participar de nenhuma discussão. Estas palavras marcaram-me para sempre, no fundo iam de encontro à minha maneira de ser. É com esta lógica que eu encaro tudo o que escrevo e tudo o que digo em termos políticos, mais vale expressar uma opinião mesmo quando preciso sempre de conhecer e estudar mais sobre o que falo. Se eu estiver errado aprenderei com o que digo e com os reparos dos outros. Ao discutir se vai aprendendo e quando eu erro é sempre bom eu admitir o erro com a humildade e sem me sentir ferido por qualquer ego ou vaidade.
Sobre a Democracia Avançada é claro que não é preciso descobrir a pólvora ou ter algo de extraordinário a dizer que outros não disseram, quando tantos e excelentes camaradas já se expressaram sobre essa questão. No entanto há muito para discutir e ao discutir coloca-se essa questão chave no centro das atenções que ela precisa ser para efectivamente avançarmos com uma ruptura com esse programa revisionista.
De onde vem a Democracia avançada?
Comecemos pelo nome e a sua origem: “democracia avançada”. O nome e a tese que o acompanha são uma cópia de um programa do Partido Comunista Francês (PCF), o programa do PCF que precisamente o lançou na linha euro-comunista, o revisionismo e a social-democratização. Foi o começo do fim do PCF enquanto partido comunista.
Refere-se na “Nota dos Editores” do sítio pelosocialismo.net, na publicação do Manifesto de Champigny:
«A democracia avançada era concebida como uma formação política e económica entre o socialismo e o capitalismo em que a progressiva transformação das estruturas económicas pela nacionalização dos setores monopolistas abriria o caminho ao socialismo sem um confronto revolucionário mais ou menos intenso entre as principais classes antagónicas.
Essa tese correspondia a uma espécie de ressurgimento da teoria da “transformação pacífica do capitalismo em socialismo” e da “democracia, criação contínua”, defendida anteriormente por Jean Jaurès e comum a Bernstein, que Lénine refutou implacavelmente. O Manifesto de Champigny passa ao lado da teoria marxista-leninista do Estado, não define a sua natureza na “democracia avançada” – se é burguês ou proletário com os seus aliados – nem clarifica qual o modo de passagem e qual a natureza das estruturas políticas que asseguram o domínio das classes exploradoras para as estruturas politicas que servem a defesa dos interesses das classes e camadas exploradas».
O Manifesto surge na sequência de 2 acordos com o PS francês, concluídos em dezembro de 1966 e em fevereiro de 1968.
O Manifesto entende que a luta por uma democracia avançada reduziria a força do capitalismo/monopólios, que seriam obrigados – de forma pacífica, sem reagir – a ceder/em as suas posições. Isto porque deixariam de poder recorrer (!!?!!) à força3.
Embora antes tenham admitido que, havendo violência contra o povo se possa encarar “a passagem ao socialismo por métodos não pacíficos”4, logo acrescentam que os comunistas franceses orientam a sua atividade para a passagem pacífica ao socialismo5. E invocavam as Declarações dos Partidos Comunistas de 1957 e 1960, posteriores ao XX Congresso do PCUS e à viragem reformista (teórica e prática) que introduziu no Movimento Comunista Internacional (MCI)6.
Note-se que, apesar de tudo, o Manifesto exigia o desaparecimento simultâneo da NATO e do Pacto de Varsóvia e que a França não renovasse os seus compromissos com a NATO “no prazo posterior a 1969”
Portanto é claramente mentira que a Democracia Avançada seja uma criação do PCP. Tanto quanto é mentira que o que aconteceu a outros partidos comunistas não interfere no rumo do PCP e que cada qual segue o seu próprio caminho “soberanamente”.
Percorre o discurso do PCP infelizmente há muitas décadas “a originalidade portuguesa” da via para o socialismo e o “nosso próprio modelo de socialismo”. Esta postura está ligada a uma prática decadente e nada saudável de relações com o movimento comunista internacional e com os países que foram socialistas ou onde se considera haver socialismo. É evidente perante a pobreza e o pouquíssimo esforço dedicado ao estudo das causas do fim do socialismo na União Soviética e a postura geral do PCP sobre a União Soviética que o seguidismo cego da União Soviética não foi superado mas foi apenas sucedido pelo seu substituto natural: a URSS passou a ser um tabu que é proibido discutir. Aqueles que estudamos marxismo-leninismo pelos nossos próprios meios (já que o partido não mexe um dedo para ajudar nesse aspecto) apercebemo-nos que é impossível ter a mesma opinião sobre Lenin, Stalin, Kruchev e Gorbatchov. Mas para as posições oficiais do PCP sobre a URSS… Lenin, Stalin, Kruchev e Gorbatchov são todos igualmente admiráveis e criticáveis pelos aspectos positivos e negativos da URSS. Esta postura é uma forma extremamente cínica e cobarde de “pôr uma pedra sobre o assunto” e efectivamente esquecer e apagar a União Soviética da nossa memória colectiva sem passar pelo trauma de dizer aos militantes do PCP que afinal renegamos a URSS, Stalin e o leninismo. Os militantes enganados pela conversa oca de vagas críticas aos erros e desvios (sem nunca apontar concretamente quais) da URSS e às “conquistas do socialismo” (também sem ir além das banalidades sobre o “estado social” que também existe em capitalismo) são facilmente adormecidos pelo culto desse passado e do suposto leninismo do PCP pelo merchandising ao estilo “t-shirts do Che” e “bustos de Lenine”. Já os livros de Marx e Lenine ficam, na mentalidade dominante do partido, reservados a eruditos e especialistas. Stalin nem vê-lo, foi praticamente censurado desde o tempo de Krutchev (aliás isso valeu uma purga recente de um histórico e heróico camarada do partido).
O aprofundamento da democracia
“No Portugal do tempo em que vivemos o caminho do socialismo é o da luta pelo aprofundamento da democracia.” (programa do PCP: democracia avançada, os valores de abril no futuro de Portugal, capítulo III – O Socialismo, futuro de Portugal, 3º parágrafo)
A luta pelo “aprofundamento da democracia” não leva ao socialismo, a luta pelo socialismo – o alcançar do socialismo – é que leva ao aprofundamento da democracia, presumindo que falamos de democracia para os trabalhadores e não para os patrões.
Foi o próprio Lenine que explicou que muitas tarefas democráticas – que se supunha antes que a burguesia realizaria na revolução democrática-burguesa – só puderam ser realizadas pela Revolução Socialista de Outubro. É isso que a experiência histórica e o estudo marxista-leninista da história (o materialismo dialéctico) nos ensina das várias revoluções burguesas e proletárias entre o século XIX e XX.
Existe uma grande diferença entre arrancar do Estado burguês por exemplo a concessão do fim das taxas moderadoras no sistema nacional de saúde ou fim das portagens em algumas autoestradas pela luta de massas procurando tornar o regime democrático-burguês ingovernável, decadente e pronto a ser derrubado e por outro lado alcançar estas concessões com acordos parlamentares e soluções de governo com o “partido socialista” (isto é a social-democracia) no sentido prestar vassalagem e vergar-se perante as instituições burguesas num espírito colaborativo com o Estado burguês.
Nós marxistas-leninistas não queremos ser lacaios do Estado burguês, do parlamento burguês e da sua miserável “democracia” da nossa escravização. Nós marxistas-leninistas não queremos passar uma vida a tapar uns buracos para aparecerem outros enquanto nos vergamos aos patrões e aos seus partidos. Nós marxistas-leninistas queremos deitar a baixo esta parede e todos os seus buracos e construir um edifício novo onde aí sim se possa ter a democracia dos proletários, onde o voto conte mesmo por igual porque já não há ricos nem pobres, já não há exploradores e explorados.
No nosso caminho há pequenas vitórias e há reformas arrancadas eventualmente ao Estado burguês, mas não é com apertos de mão e vénias aos nossos carrascos, mas sim com punhos erguidos e luta sem parar até derrubar tijolo por tijolo todo o “palácio de inferno” capitalista.
Todas as coisas pequenas e grandes têm um sentido mais profundo para lá da neutralidade do jargão de especialista dos cínicos oportunistas que nos querem enganar com a sua banha da cobra.
A falsa equidistância e a falsa moral
Oficialmente o PCP da Democracia Avançada afirma uma equidistância, um suposto combate a dois oportunismos de cada lado: um oportunismo de esquerda e um oportunismo de direita. Por oportunismo de esquerda entende-se o chamado “esquerdismo”, maoísmo, trotskismo, anarquismo. Por oportunismo de direita entende-se revisionismo, reformismo, social-democracia (quase sinónimos neste caso).
Na realidade porém o combate ao oportunismo de direita é zero porque o próprio PCP actual é oportunista de direita e o combate ao esquerdismo é irrelevante, quer dizer não é sequer algo que o PCP demonstre necessidade de fazer dada a insignificância dos supostos partidos ou organizações esquerdistas que restam.
Convém esclarecer que as picardias do PCP com o Bloco de Esquerda não tem absolutamente nada a ver com um “combate ao esquerdismo”. O PCP e o BE são duas variantes muito semelhantes de suporte ao PS que rivalizam por cotas de poder institucional apenas. Eu diria que a diferença entre um PCP cada vez mais católico e um BE das “causas fracturantes” lgbt etc não vai além dessa postura mais “moderna” ou “pós-moderna” ou “tradicional” ou “tradicionalista”.
As diferenças entre a postura do PCP face ao oportunismo de direita e ao oportunismo de esquerda é visível por exemplo se compararmos a postura face ao PS ou face ao MRPP. O MRPP conta para alguma coisa nos documentos do partido? Não (e nada contra neste caso). Mas o que é revelador é a postura face ao PS que não só não é de combate ao PS como é de aliança com o PS. Conclusão: não há equidistância nenhuma e não há sequer combate a oportunismos nenhuns, há unicamente a preocupação de persuadir o partido social-democrata mais forte no parlamento (o PS) a estabelecer acordos e alianças com o PCP no sentido de adquirir posições em futuras distribuições de cargos institucionais e cotas de poder em governos de “centro-esquerda” sociais-democratas.
Nota: O PCP durante vários anos devido há influência dos militantes revolucionários que ainda cá estão, ou cá estiveram, caracterizou correctamente o Bloco de Esquerda como um partido social-democrata o que prova exactamente o que eu disse de que as críticas do PCP ao BE nada tem a ver com combate ao esquerdismo.
A crise no movimento comunista internacional
Um pequeno aparte. Porque é que eu defendo as teses do KKE? Porque eu efectivamente li livros de Marx e de Lenine. E por isso sei distinguir o que é um discurso comunista de um discurso revisionista. Quando o meu partido e o KKE entraram em conflicto eu percebi imediatamente que era o meu partido que estava a afastar-se do marxismo-leninismo e vim a descobrir para meu espanto que no KKE o marxismo-leninismo (contrariamente ao meu partido) faz parte do seu dia-a-dia em vez de ser uma peça arqueológica ou de museu. Foi o conflicto público entre o meu partido e o KKE que me fez prestar atenção aos documentos do KKE. O PCP no seu início era marxista-leninista mas agora estamos numa “nova fase”. É sintomático que as fases e etapas “antes do socialismo” ou “para chegar ao socialismo” aumentaram depois do 25 de Abril em vez de diminuir. Mas era suposto que derrubando o fascismo estaríamos em melhores condições para chegar ao socialismo…
Enquanto se «luta» pela «democracia avançada», recua-se na luta pelo socialismo
O Blog Que Fazer explica melhor que eu o que eu quero dizer que é o socialismo que leva ao aprofundamento da democracia e não é o aprofundamento da democracia que leva ao socialismo. O sentido e objectivo das concessões do Estado burguês podem levar à perseveração do capitalismo ou ao seu derrube e substituição pelo socialismo – depende dos métodos e do contexto em que se ganham essas concessões. Bem mas repito que o Blog Que Fazer explica melhor que eu e passo a citar:
“O que verdadeiramente depende de nós é a luta de massas pelo socialismo, a isso chama-se a formação do elemento subjetivo. Paradoxalmente, acusam-se de esquecerem a necessidade da maturação do elemento subjetivo os que defendem que na ordem do dia está, isso sim, a luta pelo socialismo e não a luta «pela democracia avançada». Enquanto se «luta» pela «democracia avançada», recua-se na luta pelo socialismo e não o inverso.
É que ao socialismo, considerando, e nisso está tudo de acordo, que as condições objetivas existem numa grande parte do mundo, não se chega nem por via parlamentar, nem com alianças com quem quer perpetuar e aprofundar o sistema capitalista. É mesmo necessário educar as massas para a luta pelo socialismo e não apenas por reformas do capitalismo. Não se ouve uma palavra de ordem relativa ao socialismo nas manifestações sindicais ou partidárias. Que noção tem a classe operária e o povo português da necessidade da luta pelo socialismo, ou da luta anticapitalista? Quem quer que participe em manifestações ou viva neste país com os olhos minimamente abertos sabe qual é a resposta a esta pergunta.
E, no entanto, criar condições para isso depende exclusivamente de nós. E é precisamente isso que a «vanguarda» não faz, preferindo-se palavras ocas como a «urgência», a «exigência» e a «atualidade» do socialismo para consumo interno sem introduzir nas massas a ideologia de classe, limitando as massas à luta por reivindicações imediatas. As massas sabem muito bem conduzir sozinhas essas lutas sem precisarem de partidos. Aliás, as lutas da classe operária, desde que passou a existir como classe, foram espontâneas. Para onde conduzi-las, isso sim, só um partido comunista lhes pode dizer. Não se trata, como maldosamente podem acusar, de abandonar a luta por reivindicações concretas, nem de, por exemplo, neste momento, fazer greves pelo socialismo. Trata-se de introduzir nas massas uma mundividência, uma ideologia, que explique o mundo e mostre como transformá-lo, através de um constante trabalho educativo aproveitando todas as oportunidades mesmo a mais pequena reivindicação num local de trabalho.”
(do artigo “Muito falar e pouco acertar” do Blog Que Fazer)
O que fazer? Separar o que é são do que é podre
Para mim é impressionante ver como as mesmas pessoas que apoiaram Álvaro Cunhal contra os renovadores hoje apoiam a geringonça e o PS. Este definitivamente não é o mesmo PCP do Casquinha e do Caravela mártires na luta pela reforma agrária nos anos 80, este não é o mesmo PCP de camaradas que eu conheci que se dispunham à guerra civil em Novembro de 1975, este não é o mesmo PCP dos que lutavam na clandestinidade contra o fascismo arriscando a vida e nem se pode falar de comparar com aquele PCP dos heróis do soviete da Marinha Grande de 1934. Este PCP não é o PCP de militantes com tomates. Este PCP é antes o oposto, é um partido de subservientes cobardes, eu chamo-lhes de eunucos. Eu não digo isto para ofender os bons camaradas, os bons camaradas sabem o que vêem quando olham para o comité central e quando olham à sua volta. A herança deste partido é de camaradas que arriscaram a vida na luta de classes revolucionária, camaradas que não se rendiam perante a maior repressão e hoje o que vemos? “Militantes” que têm medo de falar contra as orientações do comité central? “Militantes” que têm medo de denunciar o oportunismo do Secretário Geral? “Militantes” que toda a vida foram contra o PS e que agora já tratam como mal menor não o PS mas o próprio PCP? “Militantes” que têm medo de debates polémicos e do confronto interno com oportunistas mas que preferem o consenso da festarola da festa do avante? Isto é só falta de consciência política ou é também apodrecimento moral? É que eu vejo a transformação de homens em ratos.

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